Uma das principais causas do incremento dos gastos em
saúde e da insustentabilidade dos sistemas se deve à incorporação de novas
tecnologias (duras), como medicamentos e aparelhos/máquinas. No entanto, cabe
problematizar o que de fato produz saúde. Qual é a engrenagem principal do
processo-saúde? Vivemos em uma sociedade em que cada vez mais se produz a
medicalização, normatização e a protocolização da vida. Busca-se encaixar as
experiências em parâmetros generalizáveis, minimizando o espaço da
singularidade – o que se encaminha ao uso de medidas e soluções ‘rápidas’ e
‘instantâneas’, como o uso abusivo e desnecessário de fármacos, que muitas vezes
são respostas passageiras à raiz do problema.
Singularidade e cogestão:
dimensão micro do processo-saúde
Tanto o uso de técnicas e intervenções baseadas em
evidências, como a utilização de protocolos, planejamento, indicadores e metas são
importantes. No entanto, estas ferramentas não contemplam toda a complexidade
de variáveis da produção do cuidado em saúde e a singularidade dos indivíduos,
dos coletivos e dos fenômenos. A questão não é deixar de avaliar os resultados
ou de estabelecer metas, mas de investir em modelos de gestão centrados na
ideia de democracia institucional, de cogestão e de motivação, de construir
indicadores em conjunto e articuladamente com os atores do processo, de uma
gestão participativa, como no modelo de ‘colegiado de gestão’ – que tão pouco
se aborda.
É de suma importância investir na dimensão micro do
processo de saúde que inclui a relação entre profissionais e usuários: apostar
na autonomia, corresponsabilidade, compreensão das singularidades, pois na
ausência destes componentes, os serviços de saúde estão fadados a pouca
resolubilidade ou até mesmo ao fracasso. Os sistemas de saúde carecem do investimento
em tecnologias LEVES (relacionais) de cuidado e da educação permanente dos
profissionais de saúde.
Caixa de ferramentas tecnológicas (duras-leves)
Émerson Merhy postula
que na relação profissional-usuário se utilizam ‘caixas de ferramentas tecnológicas’, compostas por saberes e seus desdobramentos materiais e
imateriais, que fazem sentido de acordo com o lugar que ocupam nesse encontro e
conforme as finalidades que almeja. Estas ferramentas são classificadas em três tipos de tecnologias e configuram-se distintos modelos de atenção à saúde
dependendo de como estas se combinam:
· Tecnologias
duras: vinculada ao manuseio de aparelhos e equipamentos que
possibilitam perscrutar, acessar dados físicos, exames laboratoriais e
medicamentos utilizados nas intervenções terapêuticas. Esses processos consomem
trabalho “morto” (das máquinas) e trabalho vivo de seus operadores.
· Tecnologias
leve-duras: se
referem aos saberes agrupados que direcionam o trabalho, constituindo-se por
normas, protocolos e o conhecimento produzido nas diversas áreas do saber no
âmbito clínico e epidemiológico. Apesar de terem o trabalho já capturado,
possuem certo grau de abertura e flexibilidade de acordo com cada situação.
· Tecnologias leves: correspondem às ferramentas que permitem a produção de relações
envolvidas no encontro trabalhador-usuário mediante a escuta, o interesse, a
construção de vínculos, de confiança; é a que possibilita mais precisamente
captar a singularidade, o contexto, o universo cultural, os modos específicos
de viver determinadas situações por parte do usuário, enriquecendo e ampliando
o raciocínio clínico e os processos de cuidado. É neste âmbito que se produz o
trabalho vivo-em-ato, que o usuário tem maiores possibilidades de interagir e
ser escutado.
Os sistemas de saúde centrados
na Atenção Primária (AP) possuem menor densidade tecnológica dura e se
configura com alta complexidade de ações no âmbito relacional (tecnologias
leves). Estas possuem menor custo financeiro ao sistema e o é elemento
fundamental do cuidado em saúde. No entanto, por que se investe tão pouco no
âmbito micro da atenção em saúde? Por muito tempo a preocupação maior foi pela
incorporação das tecnologias duras e leve-duras, que sem dúvida têm papel
importante nos tratamentos. Porém, sem o uso adequado e eficaz de tecnologias
relacionais (leves), corre-se o risco do uso não racional das tecnologias
duras, repercutindo na medicalização e realização de exames desnecessários.
Pior que isso, é o possível dano causado aos pacientes pelo uso equivocado
destes aparatos e ferramentas. Por tanto, investir em tecnologias leves possibilita
o conhecimento contextualizado e aprofundado das pessoas e situações em que vivem
- o que seguramente abre caminho para a produção/promoção de saúde com melhores
resultados e uso racional e não prejudicial dos recursos a um custo acessível e
sustentável ao sistema de saúde.
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